segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Um supercérebro feito de silício e neurônios

"Em jogo online, 50 mil pessoas interagem entre si e com um computador para resolver o problema do enovelamento de proteínas"

Fernando Reinach é biólogo. Artigo publicado em "O Estado de SP":

Fazer contas. É uma atividade que nosso cérebro faz mal. Qualquer calculadora é mais rápida e erra menos. Mas os melhores computadores são incapazes de competir com nosso cérebro em algumas atividades. Qualquer criança é capaz de observar e reagir a mudanças na expressão facial dos pais.

Quando crescemos, desenvolvemos a capacidade de analisar sons, gestos e expressões faciais, e, com base nessas informações, construímos imagens razoavelmente fiéis do pensamento de outro ser humano. Estamos longe de ter computadores capazes dessa proeza.

Alguns problemas necessitam da capacidade de cálculo de um supercomputador combinada ao processamento visual do cérebro humano. Até agora esses problemas eram atacados por um cientista na frente de um computador.

A novidade é o desenvolvimento de um método capaz de combinar a atividade de milhares de cérebros humanos e diversos "cérebros eletrônicos", com o objetivo de resolver problemas que necessitam desses dois tipos de "inteligência". O mais interessante é que, observando como milhares cérebros humanos se complementam e interagem com o supercomputador, é possível começar a entender o que torna o cérebro humano tão especial.

Você deve estar imaginando uma enorme máquina na qual fios ligam centenas de cérebros de voluntários a um enorme computador. Na realidade, o equipamento no qual foi feito o experimento é um jogo online onde mais de 50 mil pessoas interagem entre si e com um computador para resolver o problema do enovelamento de proteínas.

O enovelamento de proteínas é um dos problemas não resolvidos da biologia molecular. Nosso cabelo é feito de proteína (queratina). São proteínas (lipases) que digerem a gordura no nosso intestino e carregam o oxigênio em nosso sangue (hemoglobinas).

As proteínas são longos cordões microscópicos. Imagine um colar construído com 20 tipos distintos de pérolas (os 20 aminoácidos), organizadas em uma sequência pré-determinada. Essa sequência é idêntica em todas as cópias da proteína queratina, mas muito diferente da sequência presente nas moléculas de hemoglobina. Esses colares de pérolas são produzidos nas células como se fossem um fio de macarrão que sai da máquina responsável por sua fabricação (o ribossomo). Mas, ao contrário do macarrão, esses fios se enovelam rapidamente após serem fabricados pelo fato de possuírem cargas elétricas e regiões que repelem a água.

O intrigante é que cada cópia de uma dada proteína acaba enovelada exatamente da mesma maneira. Apesar de sermos capazes de examinar uma proteína e determinar exatamente como ela está enovelada (sua estrutura tridimensional), somos incapazes de predizer como uma proteína vai se enovelar examinando sua estrutura desenovelada (sua estrutura linear). Em outras palavras, as regras de enovelamento ainda são desconhecidas. São essas regras que milhares de "jogadores" voluntários estão ajudando a descobrir.

O jogo funciona da seguinte maneira: quando a estrutura tridimensional (enovelada) de uma proteína é determinada, mas antes da informação se tornar pública, o desafio de enovelar a proteína é proposto como um quebra cabeças no site do jogo (fold.it). A estrutura desenovelada (linear) é apresentada aos milhares de jogadores, que usam uma interface gráfica sofisticada, acoplada a computadores localizados em grandes universidades, para manipular a estrutura tridimensional da proteína, enovelando cada pedaço.

Os jogadores podem se agrupar em times, concorrer uns com os outros e decidir quando e como usam os computadores para simular ou avaliar possíveis soluções. Em algumas comunidades, jogadores se especializaram em parte do problema; em outras, tentam chegar rapidamente a uma resposta preliminar.

O jogo incentiva a diversificação de estratégias e metodologias. À medida que o jogo se desenvolve, com pontuações e outros incentivos típicos de um videogame, os resultados (propostas de enovelamento) são avaliados e comparados com o enovelamento verdadeiro. Ganha quem chegar mais perto da resposta correta no tempo determinado, em geral dias ou semanas. Você também pode participar, basta se inscrever e aprender a jogar usando os tutoriais.

O resultado desse enorme experimento, envolvendo milhares de cérebros humanos atuando simultaneamente com um conjunto de computadores, demonstrou que a combinação homem/máquina é mais eficiente e rápida quando comparada ao uso isolado de computadores ou do cérebro humano.

Os cientistas, observando a atividade dos jogadores, puderam descobrir como a mente humana complementa os cálculos matemáticos sofisticados, de quebra descobrindo um pouco sobre o funcionamento do nosso cérebro. Foi descoberto, por exemplo, que o cérebro humano avalia melhor o potencial de uma solução parcial que os melhores programas. E também que diferentes pessoas utilizam estratégias diferentes para chegar à mesma solução.

Até hoje, a mente humana foi usada para resolver problemas diretamente ou para programar computadores que ajudam a resolvê-los. Esse experimento mostra que é possível combinar, em um ambiente virtual, a inteligência de milhares de pessoas e o poder de cálculo de um computador. O resultado é um supercérebro capaz de combinar a velocidade dos processadores de silício com a intuição gerada pela coletânea de neurônios no interior de milhares de crânios. Sem dúvida, um novo e poderoso modo de gerar conhecimento.
(O Estado de SP, 7/10)

http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=73951

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